O ano de 1572 foi um ano complicado na Europa. O protestantismo religioso crescia assustadoramente por todo continente, e agora atingia também países sempre considerados com grande poder católico, como a França. Diversas engajamentos e ataques aos protestantes aconteciam em várias cidades por reinos europeus. Ser pego carregando uma bíblia que não estivesse escrita em latim era sinônimo de ser despojado de todas as posses e - nos casos onde o "pecador" não aceitasse renunciar aos dogmas que pregava - era executado. A maioria da população era instigada a atacar os pequenos grupos protestantes, também chamados de huguenotes, especialmente pela Igreja Católica. Não aceitavam de forma alguma perder seu poder para pessoas comuns, que poderiam elas mesmas interpretar os ensinamentos religiosos sem a necessidade da casta religiosa. Pressionando o rei e fazendo discursos nas suas sedes, divulgava-se o pensamento que, se a maioria da população francesa é católica, era essa a religião que deveria ser protegida por seus cidadão e a classe dominante. A maioria não poderia ser refém da minoria, diziam. Ou a minoria se adequa à maioria, ou desaparece.
Para tentar amenizar o caos de guerra civil que se instalava no país, Catarina de Medici, mãe do rei francês Carlos IX, propôs o casamento de sua filha, a princesa católica Margareth com rei protestante de Navarra, Henrique III. A ideia era fazer valer a tolerância religiosa dos dois lados, para que o país pudesse enfim viver em paz.
O casamento real aconteceu em Paris, em 18 de agosto de 1572. Milhares de famílias protestantes viajaram para a cidade sede do reinado francês para celebrar a paz e a tolerância entre católicos e protestantes. Pela primeira vez os huguenotes não precisavam mais se esconder, e poderiam proferir sua fé abertamente pelas ruas de Paris.
A paz durou apenas alguns dias. Em 22 de agosto o líder protestante Gaspar de Coligny, almirante da armada do rei de Navarra, sofreu um atentado quando passeava em uma das ruas próximo ao rio Sena. Um tiro o atingiu do forma grave, mas não mortal. Foi carregado para uma pequena fortaleza dentro da cidade, e 30 homens se revezavam na sua segurança enquanto se recuperava do ataque, mas em vão. Na tarde do dia 24 de agosto, um pequeno exército atacou o local e massacrou todos, e o corpo de Coligny foi jogado pela janela para uma multidão em êxtase.
A morte do almirante foi o estopim para o genocídio que ficou conhecido como a noite de São Bartolomeu: milhares de católicos saíram as ruas massacrando todos os protestantes que encontrassem pela frente. As casas huguenotes eram invadidas uma atrás da outra, durante toda a noite. Os mortos eram despojados de suas roupas, e o corpos eram jogados no rio Sena. Acredita-se que morreram cerca de 2 mil protestantes naquela noite.
No dia seguinte Paris acordou com o cheiro de morte em toda cidade. Os corpos boiavam no rio, e as ruas estavam impregnadas com sangue, causando inclusive acidentes causados pelos cavalos que escorregavam pedras lambidas de vermelho. Estima-se que demorou mais de um mês para os franceses voltarem a utilizar a água do Sena, devido ao cheiro de putrefação.
O episódio, que entrou para a história como o Massacre da Noite de São Bartolomeu, resultou ainda em embates violentos por várias outras cidades francesas, e há estimativas que chegam a afirmar em 30 mil mortes por todo o reino.
O episódio gerou reações indignadas por todo continente. Pela primeira vez na história as cortes e universidades passaram a discutir sobre a relação das minorias dentro de uma sociedade e leis sobre o tema passaram a ser editadas. Esses pensamentos evoluíram com o Iluminismo que se seguiu, que passou cada vez mais a desenvolver o pensamento universal sobre a forma de poder governamental. O resultado disso foi a Revolução Francesa em 1789, onde finalmente fundamentou-se o pensamento básico da democracia moderna de que o governante é que deve servir ao povo, e não o inverso.
O mais triste de tudo isso é constatar que, mesmo 5 séculos da noite de São Bartolomeu, ainda estamos discutindo a relação das minorias com as maiorias, e o papel de um governo democrático na sua proteção.
Nessa campanha política polarizada e fragilizada de ideias e propostas, ouviu-se muito as mesmas frases ditas a meio milênio atrás, hoje definidas como a "Tirania da Maioria". Por que o governo deveria se preocupar com a minoria? É sua obrigação governar para a maioria. A minoria que se adeque ou desapareça.
Foi a partir do contra-pensamento a esse raciocínio que nasceu a democracia moderna. Um governo democrático tem o dever de proteger suas minorias, sejam elas quais forem - desde que dentro da legalidade e da legislação vigente. Não apenas pelo dever moral, mas também pela manutenção da estrutura democrática: uma sociedade moderna e estruturada necessita da pluralidade de ideias, costumes, religiões, cultura, raças.
Vejam a questão da acessibilidade. Pessoas cadeirantes certamente não tem facilidade em se locomover pela cidade. E nem de longe fazem parte de um grupo que pode ser incluído na definição de maioria. Baseado no pensamento de que a "minoria que deve se adaptar à maioria", por que o Estado deveria criar uma legislação apenas voltada para essas pessoas, o que resultaria em gastos públicos que não seriam usufruídos pela maioria?
Esqueça essa besteira de "Dia do Heterossexual", ou "Dia do homem branco". As maiorias não precisam de proteção, exatamente por ser maioria. Quem não tem voz, quem sofre o preconceito no dia a dia, quem realmente tem dificuldades em fazer valer seus direitos básicos, são as minorias.
Democracia é dar voz a quem não consegue gritar, as vezes nem mesmo falar. Mas do que isso, é fazer o direito de todos, mesmo que isso não seja benéfica para a maioria. Dar liberdade de pensamento a todos os membros da sociedade, mesmo que esse não seja o pensamento vigente. Voltaire já havia definido isso de forma simples e eficaz: "Não concordo em uma palavra que você está me dizendo, mas daria minha vida para que você tenha a liberdade em citá-las", disse ele.
Há quase 300 anos atrás. Trezentos anos.
Hoje é notório que o grau de desenvolvimento de uma sociedade pode ser mesurado pelo poder de proteção que ela tem com suas minorias, permitindo a universalidade dos direitos básicos da população.
E também seu grau de primitivismo.

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